
Mal escutou a flecha que cortara o ar atingindo em cheio sua carne fraca. Soube que fora atingida pois as vertigens não lhe deixavam se enganar. O impacto da segunda flecha fez com que caísse pesadamente no chão e contra todas as suas vontades. O desespero roçava seus cabelos delicadamente, quase se entregara a ele uma vez mais. Mas sabia, ah isso ninguém nunca precisou lhe dizer, sabia que se ficasse caída amaldiçoando suas fraquezas e sua dor que lhe era quase insuportável, e pior, se se entregasse ao desespero que era tão dócil e irresistível, sabia que a morte seria tão certa quanto a flecha que tinha cravada na carne. E a dor que sentiria antes que a morte lhe desse seu último beijo, ah, essa dor que sentia agora não era nada comparado ao que viria, tortura de uma Inquisição Espanhola. Quase morreu nesses poucos instantes em que ficara caída no chão, isso também soube, mas vagamente essa certeza lhe invadira e também vagamente e distante esquecera da dor e esforçara-se como nunca antes para se levantar. O passo bambo acompanhado de outra vertigem quase lhe jogara ao chão novamente . Mas segurara-se firme e então começara novamente a correr. Não muito longe o som de passos lhe indicavam que o inimgo aproximava-se. Embrenhara-se na floresta sagrada que era tão sua quanto de Deus, ela que era guerreira antiga e bruxa de si mesma. Concentrou-se o quanto pôde e ignorando o sangue que lhe escorria tão indiscretamente continuou abrindo caminho pelo mato virgem. A dor encontrara nela um lar santo, refugiando-se em seu peito como uma criança que se aninha no colo quente da mãe. Se houvesse tempo, talvez ela tivesse mesmo feito um carinho em sua criança chorosa que ao invés de amor lhe trouxera somente o sangue que não parava de fugir. Mas não havia tempo. Correu até perder a noção das horas. ...
Finalmente sentiu-se segura quando chegou a uma clareira onde a Lua lhe lambia os cabelos molhados de suor, banhou o rosto no lago que lhe refletia um rosto maltratado e cheio de cicatrizes invisíveis. Um lago de águas verdes profundas e sombrias como seus olhos de gata selvagem. O ar parecia se recusar a entrar em seus pulmões como se ela abrigasse um veneno mortal que ao simples toque contaminava as criaturas mais puras. O rosto ainda em brasas, sentou-se enconstada a uma árvore que lhe pareceu ser a mais antiga, de tronco largo e vivido, tão machucado quanto ela. Queria adormecer um pouco. Esquecer um pouco. Mas então por se sentir segura e salva, suas dores se libertaram. Foi só então que ela notou que talvez fosse morrer. É que toda a dor ignorada viera tão de uma vez, reclamando atenção, que era como ouvir toda uma multidão gritando palavras incompreensíveis. Arrancou as flechas sem dó lembrando-se só agora de que não era a primeira vez que quase morria. Ah, soube o que lhe aguardava. Uma noite muito longa repleta de febre, dores, vertigens, solidão, sangue e lágrimas. Quase chorara só pela espectativa do horror das horas que viriam agora que a dor estava liberta e totalmente desperta.
Não teve pena de si. Em momento nenhum culpou a vida injusta. Viveria o suficiente para esquecer seu pesadelo de noite. E ainda tinha a companhia muda da Lua que logo logo também morreria. Dormiu. Mas não houve sonhos.
Quando acordou desperta pelo Sol que entrava pela clareira timidamente, descobriu surpresa que ainda estava viva, que sua alma permanecia colada à sua carne, e que suas feridas já se fechavam discretamente. Talvez sobrevivessem cicatrizes e seriam as únicas lembranças dessa noite de quase morte, onde sua força selvagem quase lhe fizera deixar esse mundo pra sempre. Ainda estava meio febril mas já estava pronta para uma próxima fuga, ou talvez quem sabe dessa vez, estaria pronta para lutar... mesmo com suas mãos nuas e inutéis... afinal era guerreira e era preciso muito mais - depois que se passou o susto - tinha certeza que era preciso muito mais para perder as forças pra sempre. Isso talvez fosse um consolo. Se ao menos deixasse de temer a dor e sua nascente de lágrimas... Sacudiu a cabeça vigorosamente tentando espantar os pensamentos. Não era hora para isso. Levantando-se decidida disse a si mesma antes de voltar a abrir caminho pelo mato virgem: 'o tempo não espera por ninguém...' E foi-se já sem dor, ou talvez com a dor escondida. Quem sabe...
Renata Lôbo