domingo, janeiro 29, 2006

Medo de escuro

Levantei-me no meio da noite. Ainda não me lembro bem por que essa vontade súbita. Sei que tive ímpeto de levantar. Andei ainda descalça pelo quarto vazio e escuro, tateei em busca de uma forma conhecida. Vi que as sombras - aquelas sombras que me aterrorizavam quando criança - vi que elas, agora na minha vida quase adulta, tomavam uma forma inesperada e de alguma forma surpreendentemente linda! Como pudera antes ignorar a beleza daquelas formas? Como pudera eu esquecer que existia vida mesmo enquanto nada existia?
Fiquei ali parada por algum tempo. Extasiada, quase emocionada. Mas assustei-me com aquela beleza súbita e lentamente voltei a sentir o horror que há tempos não sentia. O silêncio, a falta da vida, aquela vida pulsante e dolorosamente feia. Mas a vida que enche o quarto quando há luz. Não que eu me sinta menos morta a luz do dia, é apenas que a minha falta de existência é totalmente suprimida com a companhia dos vivos. E à noite, em meio ao silêncio, ao escuro vazio e àquelas formas inteiramente novas e inteiramente lindas, a minha falta do que viver pareciam me sufocar com mais intensidade.
Sufoquei a muito custo um grito de horror. Constatei que eu já não vivia há muito tempo. Não. Meu corpo ainda respirava. Mas há quanto tempo será fiquei parada observando os movimentos vazios do meu cotidiano? E agora estava ali, e uma emoção inteiramente nova me tomava. A emoção da minha consciência. Como despertar de um pesadelo, mas em forma contrária. Acordei no meio do escuro e no meio do nada.
Mas as formas ainda estavam ali e o seus olhos imáginario me observavam. Sentei novamente na cama. Não quero continuar acordada enquanto puder ouvir apenas a minha respiração. Prefiro a companhia dos vivos, ou pelo menos daqueles que não tem noção de que já morreram e que esperam apenas a sua vez de serem enterrados. Não quero mais acordar nesse escuro vazio e nem ver essas formas sem formas. Amanhã compro um abajur.

Renata Lôbo

segunda-feira, janeiro 09, 2006

Alice e o 'desconhecido'...

Caiu em si finalmente. Como pôde pensar que era tanto, que podia tanto? Ela via o mundo com um certo pudor, uma certa vergonha. Meu Deus, eu estou viva! Como pudera se esquecer disso? Estava viva! Uma afirmação simples, mas tão complexa. Não podia mais voltar atrás. Estava viva e pronto.
Procurou um lugar sossegado onde pudesse se sentar um pouco sozinha. Tinha que pensar nos acontecimentos da noite anterior. Ela lhe dissera tudo que sentia e ele ficou apenas calado, olhando-a. Ele ficou calado, como se não houvesse lógica para uma resposta.
Sentiu o vento tocando leve nos seus cabelos, um afago delicado. O cheiro do mar lhe entrava fundo no corpo, mais fundo do que ela podia sentir. Pensou na vida que podia ter tido e na vida que teve. Uma escolha ruim talvez. Olhou pra trás, em um passado muito distante, ela teria exigido uma resposta: ' Ou me quer ou não!' Mas por alguma razão ficou calada. Sabia que iria se arrepender amargamente por isso. Ela estava viva, mas isso não era suficiente. Queria fugir de si própria, sobreviver a si própria. Sentiu um ligeiro mal-estar, uma vontade insólita de não estar em lugar nenhum. Uma vontade de não ser mais Alice. Talvez Ana, Joana, Isabela, qualquer uma, menos Alice.
Olhou ao seu redor e viu que já não estava mais sozinha. Ele estava ali, bem atrás, tão próximo que podia sentir seu cheiro misturado com o cheiro do mar. Viu seus lábios abrirem em um sorriso, um sorriso quase feio, mas ela não precsava de mais nada. Estava viva e o amava intensamente.
Ele sentou-se ao seu lado no chão da praia. Começou a dizer um texto que parecia ter sido ensaiado. Ele dizia que mal se conheciam. Foi tudo que ela conseguiu entender. Mal se conheciam. 'Que ótimo então! Eu amo um desconhecido!" Era sincero, ela tinha que dizer. Mas pra quê dizer? Deu-lhe um beijo logo de uma vez. Que fosse o primeiro e o último então. Ela era Alice e não seria mais ninguém.

Passou uma semana. Estavam juntos ainda. Ele descobriu Alice finalmente. Tinha os olhos apenas em Alice. Pelo menos por uma semana foi assim. Mas uma noite as coisas foram mal. Ele lhe disse que a amava também. Em uma semana ele já a amava. Apenas uma semana! Olhou aqueles olhos de serpente mais uma vez. Seria a última vez que os veria. Ela o conhecia bem de mais pra acreditar nas suas promessas. Ele iria embora sem que ela ao menos notasse. ''_ Então que você me ame com a intensidade de um 'pra sempre', porque eu sei que na semana que vem não estará mais aqui, e eu preciso acreditar no seu amor sincero e nas suas falsas promessas.''
''- Do que você fala Alice? É sincero!'' e deu uma sonora gargalhada, ele não sabia o quanto ela o conhecia...

Passou-se um mês e ela sentou-se novamente naquele mesmo lugar na praia, recordando o primeiro beijo. Sentia tanta saudade! Ele se fora tão depressa, mas agora ela sabia que estava viva, e não ia mais se esquecer disso. Eu estou viva!
Quanto a ele, ninguém nunca mais soube, saiu um dia de casa e não foi mais visto, nem mesmo o seu corpo foi encontrado.

Renata Lôbo