quinta-feira, outubro 22, 2009

Bailarina...

A melodia fluía por entre seus dedos e por sua pele branca de porcelana fria. Sentia-a em seus doces devaneios. Arritmias. Fechava os olhos e girava extasiada ao ritmo de um piano com notas tristes. Poderia chorar e chover lágrimas sem sal, pois não seria dor. Era prazer misturado à mais simples e pura alegria. Posicionava-se com formas de bailarina e sapatinhos de boneca. Não enxergava cores, não via gostos, não ligava para belezas mundanas. A música e sua dança eram tudo que precisava para o mundo girar.

Até que a menina fechasse a tampa da caixinha de música e sua vida se tornava uma paciente espera pela próxima corda. Pela próxima dança. Pela próxima música.

Renata Lôbo

quinta-feira, outubro 15, 2009


É que havia também o medo disfarçado em finas camadas de gentilezas e agudo sofrimento domesticado. Havia o ódio pintado na pele com finos traços de ouro falso. Um olhar caído e não visto de falsas emoções encenadas com falsas preguiças. O veneno seco que não escorria pelo sangue negro de petróleo podre. Seu pobre estupor e sua pobre fantasia feliz onde visitava reinos perdidos e secretos. Seus segredos mais íntimos e nunca revelados de mordazes serafins tocando harpas quebradas e pianos desafinados. Seu paraíso era um lugar perdido e encontrado nas páginas amarelas de um arco-íris desbotado. Decifrando as palavras jogadas aos ventos por pessoas desconhecidas, afogadas de amor barato e quebrado. Ilusões compradas e vendidas a preços de lágrimas sem sal, sem gosto, sem emoção.
Se a dor se acalmasse. Se o ódio dormisse. Se o amor ficasse.
Se ela ficasse...
Mas é que havia também o medo.

Renata Lôbo

terça-feira, outubro 06, 2009

Paixão vermelha...

Há tanto a se dizer e tão pouca paciência. A criança cresceu com olhos famintos, paixão vermelha e ossos pontudos. Caía por entre abismos e saltitava dentro de florestas secretas. Raramente se entregava a sentimentos.

Eu estou contando a história da liberdade!

Tudo parecia calmo e selvagem e a contradição lhe acompanhava como seu anjo da guarda. Você sabe às vezes como o amor machuca? Ela sabia disso. Felizmente. Não mandava em sua própria vida, mas roubava tempo, sonhos e nuvens. Era linda e feia! E dizia que a morte lhe adoçaria os lábios cedo. O que não sabia, entretanto era o que seria de seu destino.
Meu senhor, creio que seu medo era simplesmente de sumir, desaparecer no ar, virar pó. Nada.
Quando cresceu, aprendeu a abandonar as pessoas que amava pois tinha medo de ser abandonada. Acredite em mim! Era difícil resistir aos seus medos e aos seus sorrisos. Parecia vestir o rosto com o sol, ou com tempestade, restos de ressaca entranhados na pele e nos olhos.

O mundo não lhe apetecia. Era chato e redondo.

Escolhia um lado das coisas e virava-se pelo avesso apertando seus nós de marinheiro, e cortando suas raízes.
Era essa a sua vida. Era esse o seu momento.
Em seus olhos havia romance. Era doce e queimava. Seus gestos e sua pele eram frios e o ar à sua volta quase glacial, como um escárnio a alma que trazia aprisionada em seu corpo leve com sangue e carne.
Alimentava-se de presença, olhares e toques. Seu mundo era povoado por gente perdida e nunca encontrada. Havia guerras constantes, explosões, ataques de fúria. E depois era só o silêncio, e algo morria secretamente.

Vivia de segredos.

Era isso que nela tanto ressonava. O mistério tem dessas coisas; deseja-se tanto desvendá-lo que se prende a ele, vício constante e arrasador. E quando se liberta desse desejo inútil, esconde-se a lembrança daquilo que existiu no meio de algum pesadelo morno e esquece-se para sempre do que se foi.

Ela era esquecida. Nessas horas era quase odiada.

Sobrevivia também. O fato era que realmente sobrevivia. E até a morte que julgava que viria sem demora, até a morte lhe esquecera cansada que estava de sua presença pesada. Era sempre preferível esquecer essa garota de olhos petulantes e sorriso afetado, caso contrário, terminar-se-ia acorrentado a ela – e até a morte morreria do descaso-sem-querer que ela fatalmente lhe presentearia. Seu destino e sua maldição.
Nunca olhava dentro de olhos, mas quando olhava, mergulhava dentro de íris coloridas e as pessoas se arrepiavam quando refletindo de volta viam apenas aquele poço sem fundo.
Causava arrepios, mas não causava medos.
Seus olhos provocavam mal-estar e às vezes calafrios secretos. Acordava-se no meio da noite lembrando-se dos fantasmas de seus olhos negros. Então suspirava-se contente pois ela já não estava mais lá. Ia sempre embora muito rápido, antes que notassem. Às vezes voltava e nem por isso era rejeitada, lhe abriam os braços, lhe ofereciam refeições, davam-lhe beijos, abraços, um pouco de carinho condicionado e antes que o sol acordasse, ela já havia sumido. Restava como traços de sua existência rastros de sua presença em cada cômodo e em cada canto da alma, como perfume esquecido e lembrado, fumaça de cigarro pregado na roupa, na pele e nos cabelos.
Ela se compunha canções aonde o amor existia, e aonde alguém lhe diria sem arrepios e calafrios:


por favor, não vá embora!

Sua triste constatação era não saber se nesse momento ficaria. Ela tinha dessas coisas: um caminho rico de sinceridade tatuado na pele fria. A tudo respondia com muita verdade e isso abria buracos onde vazava sangue, e os respingos que lhe caíam na pele queimavam feito ácido.


Ela se agarrava a isso.


Era preferível sentir dor a não sentir nada. Nada a assustava tanto quanto o vazio insuportável do nada e mancha negra que isso causava na alma.
Soprava com carinho de mãe seus próprios machucados, a carne muitas vezes exposta e ignorada. Ignorava suas mortes para não morrer de solidão. Escutava seus próprios lamentos, pois era sua melhor amiga, escutava-se com atenção infantil e benevolente. Não se impunha a ninguém, mas impunha-se a si mesma sem piedade nenhuma, pois era também sua pior inimiga.
Acordava no meio da noite agitada por um grito mudo. Sufocada. Suicida. E o mundo a ignorava, dormia. Ela sentia uma pontada de medo nessas horas, tinha a sensação de não existir, ou de que o mundo não existia, e ela era um pássaro solitário em um ninho quente, cheia de penas frias. O medo a embalava e ela adormecia, esquecendo que o mundo quase se acabara.
Se o mundo se acabasse ela ainda assim sobreviveria, uma estranha perfeita sozinha em meio aos destroços e aos entulhos de sua vida perdida.


Arriscando os limites do pensamento. Limites eram seus conhecidos amigos, os conhecia como sua própria mão, traços bem desenhados e fundos marcando, segurando. Sabia onde podia pisar, até onde poderia chegar; nunca os havia desafiado antes. Porque enfiar uma mão ensangüentada no tanque dos tubarões não era uma boa idéia. Riscos havia. Riscos lhe marcavam e esses bajulavam sua razão para que fechasse os olhos febris e caminhasse à volta do abismo. Poderia muito bem cair. E isso lhe era tentador. Por que não cair? Por que não viver? Por que precisava contar uma história para contar sobre si? Entendo a vida como era, porque não deixar que as coisas acontecessem sem desembainhar sua navalha amolada com um fino fio que lhe cortaria pedaços da alma? Seu essencial. Era tão essencial que podia perder-se dele e o descobriria colado na próxima esquina caluniada onde culminaria em uma crise histérica, aquele velho amigo que conhece seus buracos perigosos, aquele velho amigo que lhe viu no mais profundo poço e guarda inutilmente seus piores segredos, aquele velho amigo em quem você inevitavelmente confia porque ele diz com olhos serenos s calmos que nunca irá lhe trair e você o amaldiçoa por isso. Você se acorrenta a ele jurando nunca mais. Infidelidades. Deslealdades. Amor desvelado, desfigurado. Imaginação traiçoeira e perigosa. Onde o mundo nos conjura. Onde juramos eternidade. Se tudo me pegasse e me amaldiçoasse estaria ainda em mim esse monstro inabitável que abrigo carinhosamente, pois conhecendo os limites conhecia também o fim. Atritos. Turbulências.

Saudades...

Renata Lôbo