domingo, agosto 06, 2006

Tarde mansa de domingo...



E a dor a acalmava como um anestésico, acalmava o rio selvagem que era ela mesma... Suas águas negras que se diluíam em veneno sólido estavam naquele instante enchendo-se de manchas vermelhas... estava morrendo e mesmo isso não lhe era uma coisa toda ruim. A raiva estava encravada na carne como uma farpa dolorida. Já não via as outras pessoas como gente mas como inimigos. Inimigos esses que combatia com seu próprio sangue. Trancava-se dentro de si e se dilacerva toda cheia de mágoa. O dia estava quente e monótono como uma tarde mansa de domingo.
Caminhava lentamente pela rua cheia de barulho: carros passando, pessoas conversando e sorrindo. Uma criança a olhou intensamente e ela retribuiu o olhar intrigada, mas não sorriram, olharam-se criança e mulher e diziam mudamente: sim, eu sei... pensou que devia estar com uma aparência horrível quando chegou enfim em casa. Por quanto tempo será que fiquei caminhando por aí? A casa continua vazia... Sempre esteve vazia... Ligou a televisão e nem sequer se incomodou em mudar o canal, só não queria ficar naquele silêncio. Domingo à tarde e solitária era uma combinação horrível. Podia ter continuado caminhando por horas e horas e horas, mas sentiu que o corpo não agüentaria por muito tempo esse ritmo. Em tempos abafados caminhar era a única opção aceitável e concebível. E no peito a dúvida anulava o caminho claro e certo. Queria entender o que fazia de si mesma, mas ainda não tinha coragem suficiente para entender sua própria resposta.
Pensou em tomar um banho pois assim poderia relaxar, e porque também gostava de sentir o cabelo molhado solto em suas costas. Era uma sensação confortável de limpeza interna... Notou que não chorava há muito tempo. Aprendera a sentir a sua dor - sem nunca entender que dor era essa - aprendeu a sentí-la como se sente os pés no chão, ou a roupa em contato com a pele, tão natural. Mas sabia que ao conformar-se com todas essas sensações e com as suas limitações de pessoa solitária, sabia que isso era uma injecção fatal de veneno amargo. Olhou-se demoradamente no espelho. Ah, tem um vazio tão grande dentro de mim... Por mais que eu me alimente de sentimentos, de dores e alegrias, ainda assim esse vazio continua intenso. Como dói! Olha reflexo meu, olha! Pois não sei quanto tempo ainda pode me olhar... Observou seus próprios traços, o nariz longo e reto, os olhos redondos e vazios... disse enfim, em agonia já exaltada, quase em grito - pois dentro de si, atrás daqueles olhos vazios só existia um grito sem fim: eu sei, eu sei.... Mas não sabia de nada, nem sabia porque se dizia isso. Não sabia de nada... Depois vestiu um pijama com tecido macio e pensou o que mais poderia fazer pois afinal ainda era como se fosse domingo.Um dia precedia o outro e nem mesmo podia saber se isso era o certo.
O que sou neste momento? Para onde penso que estou indo? Porque estou indo? Estou sem sonhos e meu coração tornou-se novamente vazio e pesado, tão pesado que me é insuportável. Logo eu que sempre suportei tanto peso. Tanto nada. As vozes lá fora não dizem muito, apenas me lembram que tenho vida pulsando dentro de mim e que o tempo está passando enquanto me tranco nesse cômodo vazio. Enquanto me tranco dentro de mim. E o que posso fazer de mim? O que posso viver nesse tempo que ainda resta?... Já era noite novamente. Sentou-se no chão do quarto, encostada na madeira dura da cama. Fechara os olhos tentando entrar no mais profundo de si mesma. Será que posso ficar só sentada aqui no escuro absorvendo o silêncio largo da madrugada feia e longa?... Ah! Que seja então! Suspirou cansada. Resolvera pintar-se para sair, afinal era noite e ela ainda era tão jovem. Sabia que se ficasse naquela casa vazia teria a leve sensação de perda. Perda de tempo, o que parecia com perder-se a si mesma, como se ela tivesse uma ligação em relação ao tempo e ao esquecimento... Escolheu no guarda-roupa uma roupa que valorizasse seu corpo, um vestido negro que, pensou irônica, combina tanto comigo!
Saíra para a noite negra e o ar da noite a abraçara quase em ritual romântico. Tudo era de uma melancolia tão densa.... Encontrara-se com algumas amigas na porta da danceteria que freqüentava. ¨Já era hora de você chegar!¨ disse uma delas assim que a viu. Dentro do ambiente, porque nessas horas tudo parecia se passar muito rápido: a compra de bilhetes, a revista na bolsa, as pessoas conhecidas que a cumprimentavam com um sorriso vazio e dois beijos, e a caça cega à procura de um rosto conhecido mas que ela mesma nunca sabia de quem, no meio de tudo isso parecia que uma força a levava e quando se dava conta já estava encostada ao bar com uma bebida na mão. Olhando todo aquele ambiente e a música barulhenta, começara novamente a sentir toda aquela ira que adormecera no momento em que caminhava de volta para casa, pela manhã. Tomara sua bebida em largos goles e quase se arrastara para a pista de dança, e sorria em ira, e não chorava ainda em ira profunda! O que faço de mim? Dançava mergulhada na luz negra com flashes e fumaça. Estava morrendo e mesmo isso não lhe era uma coisa toda ruim...


(Renata Lôbo)