quarta-feira, janeiro 18, 2012

Depois da meia-noite...


E ela se perdia assim, em uma tarde de chuva derretida, com pés descalços e o coração desbotado, enquanto algo dentro de si gritava com uma violência muda. Ela poderia correr o quanto quisesse, poderia fugir e se embrenhar no desconhecido caminho à sua frente. Paisagens novas e rostos frescos de memória não utilizada. Podia ser qualquer coisa que quisesse e mesmo assim tudo estaria certo, pois que ela não seria vista, sentida, perdida.
Preenchia o silêncio com suspiros vazios de uma melancolia calculada. E então afastava seus suspiros, seus dissabores, suas dores, com um falso riso e um som cristalino de inutilidade ornamentada, e quando se atrevia a olhar para dentro, via monstros e aberrações disfarçadas em um heroísmo barato. Sua força arquejava com uma respiração lenta e pesada em que o ar se recusava a entrar, a existir. Era forte. Ou pelo menos, era o que aparentava. E se algo estivesse errado, sorria. Um sorriso sem sol, sem calor. Sem nada. Como se soubesse tudo. Como se não soubesse nada. Fingia, era certo. Fingia muito bem. Fingia saber qual estrada seguir, quais passos dar, quando fazer os olhos sorrirem. Fingia uma certeza inexistente e acreditava em fantasmas, assombrações e bicho-papão à meia-noite.
Depois dessa noite, vem me buscar e me levar para longe daqui.
Acreditava em verdades perdidas, mal ditas e malditas... verdades fantasmas. Verdades que não eram mentiras, nem verdades. Verdades. Sabe como é? Ela fingia que sim. Fingia muita coisa. E até o seu sol parecia de mentirinha. Uma brincadeira inconsequente de cores sem cores. Depois da meia-noite, abrace seus sonhos, abocanhe seu ego, rasgue suas flores e me diga o que dizer.
Não deixava seus sonhos irem muito longe e os mantinham acorrentados, pois tinha medo de ser abandonada, de ver seus sonhos atropelados na rodovia esburacada. Segurava-os entre dedos muito leves e unhas coloridas, escarpadas de um sangue barato.
Depois da meia-noite só restava ela.
Ela e seus fantasmas. Que não se esquecesse deles, pois eles não se esqueciam dela.
Depois da meia-noite um corcel de fogo vinha lhe salvar entre sonhos e almofadas.
Depois da meia-noite o que restasse...
Lance os dados. Quero correr por campos coloridos. Pode me levar até lá? Te deixo entrar no meu mundo e você me acompanha enquanto eu te dou minha mão. E te largo entre labirintos bem desenhados. Sou escorpião, amigo. Sabe qual? Aquele que te abandona, te fere e se mata com venenos ilícitos, porque depois da meia-noite, se eu fosse você, corria por sua vida.
Corria pra sempre.
Ela era assim, fantasma em cemitério.
Mas era tudo muito sem querer. Um acidente delicado. Desses tão irônicos e trágicos que buscam uma gargalhada cínica no fundo da garganta. E uma lágrima espremida dos olhos. Uma antítese quase perfeita, quase feita, quase inteira. Quase ela. Esqueça as palavras. Elas aqui não te ajudarão, não te levarão para lugar algum. Porque da boca não virá verdade alguma, salvação alguma. Da boca virá maldições e um sem-fim de pragas. É o fim do mundo. Acredite em mim. Sua mentira era quase sincera. E tinha um fundo de verdade, um fundo de dor. É só pra te proteger, amigo. Juro. Para te proteger de tudo isso que você não conhece e não entende. Acha que está vendo o que está vendo? É ilusão de ótica, garanto. Tudo de faz de conta. Faz de conta que era assim, que não era tão difícil, nem tão complicado, nem tão solitário. Faz de conta que era tudo de verdade. Faz de conta que você entendeu, e aceitou, e amou.
Faz de conta que ela não se afogava em um sorriso falso.
Pegue a minha mão que o sol já vai nascer. Vou te libertar para sempre.
Até a próxima meia-noite.

Renata Lôbo

Um comentário:

Auíri Au disse...

J'adore!