quinta-feira, dezembro 24, 2009

Essa estranha bondade



Era óbvio que ela não sabia que aquilo aconteceria. Mas em que mundo as coisas poderiam funcionar assim também? Onde as catástrofes anunciam sua chegada quando por instinto precisam ser tão discretas? Afinal, quanto mais vitimas aquele furacão levasse melhor seria para ele, pois só assim ele seria lembrado, temido, respeitado. Na sua vida era assim que as catástrofes agiam, e em suas costas o alvo perfeito, silencioso e certeiro. Sendo assim, nada lhe alertara sobre o que estava prestes a acontecer.
Fazia sol e o suor escorria por sua testa e suas costas. Era de se esperar que o tempo estivesse quente, mas aquilo parecia uma tortura, era como estar no próprio inferno e ter que sorrir inocente fingindo que simplesmente não sabia de sua própria condenação. Havia sido condenada. Quando e porque já nem se lembrava. Era assim e ponto final. Questionar também não era uma escolha aceitável. É que se começasse a fazer perguntas por aí, só Deus sabe aonde é que ela poderia chegar. Poderia chegar até a verdade, e que horror seria isso. Que ofensa gravíssima! Como é que poderia viver ou se olhar no espelho se descobrisse suas próprias verdades? Se tirasse suas máscaras como é que poderia sorrir ou responder às perguntas mais simples para as pessoas mais desconhecidas? Onde quer que fosse seria apontada na rua e escutaria aos cochichos os comentários mordazes de sua infâmia, - vê aquela pessoa ali? Ela sabe quem ela é. Ela sabe. – Que horror!
E então aconteceu aquilo naquela tarde. Ela não se sentia bem. Sentia tanta dor que se perguntava: por que sempre eu? Porque não o vizinho ou o filho do pastor? Era tanta dor que tinha vontade de rolar ali mesmo na rua e gritar como uma criança histérica, mas era tão bem comportada que continuava ignorando seus impulsos. E engolia em seco a febre que lhe açoitava o corpo deixando-a sem ar. Apenas não se sentia bem, não era necessário um escândalo. Dor? O que era isso se não a frescura daqueles que nunca a tinham enfrentado de vez? Antes que se deixasse levar por aquele mal estar, controlava-se com vozes gritantes em sua cabeça: É SÓ ISSO QUE VOCÊ TEM? SÓ ISSO? ISSO NEM ARRANHA! ISSO FAZ COCEGAS DE TÃO PATÉTICO! E então erguia a cabeça, forte e altiva. Não era uma pessoa fraca com suas dores, era muito mais forte do que qualquer um poderia imaginar, mas ninguém imaginava. E embora controlasse a dor na unha mesmo, na raça, e por dentro sorrisse orgulhosa de seu feito, sua expressão, no entanto, transparecia toda aquela luta inútil. Tinha a tez pálida, os olhos fundos e uma expressão carrancuda que não passava despercebido para as pessoas que a olhavam. E apontavam o dedo sem nenhum pudor, como é que ela ousava ser infeliz? Como é que ela ousava estar mal humorada? Sua função era sorrir para as pessoas desconhecidas, era rir de suas piadinhas sem-graça e fazê-las acreditar que isso era tudo o que ela mais queria na vida, era essa a sua função, ela não devia mostrar às pessoas que o mundo era um lugar frio e pouco acolhedor. Como é que ela ousava jogar na cara das pessoas daquele jeito tão cru, que na verdade o mundo cor de rosa de pessoas felizes era uma verdade absurda? Quem era ela para estragar aquele retrato pintado por uma realidade alienada e falsa? E por trás de todo dedo, toda expressão, o que restava era pura raiva. Todo mundo naquele dia estava bravo com ela porque ela estava infeliz, porque ela sentia dor.
Então apareceu aquela pessoa. Apareceu de lugar nenhum, se ela tivesse visto aquele caminhar talvez pudesse ter imaginado, pudesse ter suspeitado e quem sabe teria corrido para bem longe daqueles olhos. Mas como eu disse, as catástrofes não se apresentavam antes de acontecer, quanto mais desprevenida suas vitimas estivessem, melhor seria.
Aquela pessoa se aproximou, teve que olhar duas vezes. Primeiro a suspeita, depois a confirmação. Ela se aproximou um pouco mais e então perguntou, sem o menor pudor como aquelas pessoas de dedo longo e olhar maldoso mas era totalmente ao contrário, e isso a assustou um bocado. Era normal levar bofetadas na cara, foi assim que aprendeu a crescer, a cada bofetada que a vida lhe presenteava a fazia crescer um pouco mais, era assim, hoje é Natal: plaft! Hoje é seu aniversário: plaft! Feliz Ano Novo! Plaft! Plaft! Era só para não perder o hábito. Plaft! Para não se esquecer!
Imagine então a surpresa dela quando aquela estranha pessoa se aproximou com seu ar de felicidade barata e lhe perguntou se ela se sentia bem. Em que mundo as pessoas fazem isso? Como é que aquela pessoa podia quebrar o acordo do tempo impunemente? Era como ir contra a ordem natural das coisas, como aquela história absurda do cara que nasceu velho e morreu jovem. Um absurdo só! A resposta ficou entalada na garganta e quase a sufocou. Teve que lembrar de respirar, e se lembrar de como era falar, e aquilo não era justo, não tinha sido ela que infringira as regras, era só o que lhe faltava agora, morrer pelo crime de outra pessoa. A pessoa sorriu e repetiu a pergunta. E aquilo... Que porcaria era aquela? Veja bem, se ela ganhava de presente da vida bofetadas, ela certamente era boa em reconhecer gentilezas forçadas, gentilezas mentirosas, falsas bondades. Mas aquilo, aquilo era pura gentileza, aquele sorriso era de uma pessoa verdadeiramente gentil, e ela teve que recuar um passo. Se a Madre Teresa tivesse realmente existido, o que para ela até então parecia um absurdo, pois pessoas daquele jeito eram pura invenção, então certamente eram da mesma raça, a Madre e aquela pessoa sorrindo à sua frente. Da mesma raça, pois que no mundo aquilo só podia ser de uma raça diferente. Evoluída? Talvez, não era o importante, a questão era que ela estava estupefata e conseguiu apenas balbuciar uma resposta involuntária. Não, não estava se sentindo bem. Na verdade estava sentindo um pouco de dor, nada demais. Mentiu. Em resposta ganhou outro sorriso e aquele arrepio também involuntário e doloroso que partia do braço esquerdo irradiando um medo constrangido. Sorriu também, não aquele sorriso caloroso, nem sabia se era capaz de sorrir daquela forma, apenas sorriu embaraçada em uma vergonha muda. A pessoa se ofereceu para lhe buscar um remédio o que ela recusou com uma alegria mentirosa e um sorriso falso, tão falso quanto toda a sua vida. A pessoa insistiu um pouco mais, fez algumas perguntas e a preocupação que exalava pela sua voz a deixava mais desconfortável lhe causando calafrios, e sentia o gosto amargo do pânico subindo pelo estômago. Quanto tempo mais? Aqueles minutos mais pareciam a eternidade aterradora do fim. Até que a pessoa lhe desejou melhoras, sorrindo e seguindo seu caminho, não olhou para trás e nem imaginou o desastre que havia deixado em seu caminho, tudo por causa daquela gentileza gratuita. Os destroços dela continuaram lá, e nem se importava mais com os dedos e os olhares de reprovação. Sentia-se aliviada, pois o perigo já havia passado, mas também se sentia destroçada, e demorou um longo tempo para colar todos os seus pedaços perdidos naquela tarde quente. Demorou mais tempo ainda para superar aquele excesso de bondade. Até que o mundo voltou a girar de forma coerente.

Renata Lôbo

Um comentário:

Renata Lobo disse...

*Nota da autora:
Veja bem, eu não sou tão cínica ou tão revoltada quanto essa personagem, talvez, mas assim como ela, um dia desses eu encontrei uma dessas pessoas naturalmente gentis, e cheguei a essa mesma conclusão: a gentileza, essa gentileza natural e gratuita, me causa arrepios. Esse medo constrangido e incômodo. Então eu dedico esse conto a essa rara e estranha pessoa com quem eu conversei por talvez dez minutos, e que me deixou a absurda sensação de que pessoas assim são definitivamente de uma raça diferente. Talvez até de um planeta diferente. Será?