quarta-feira, janeiro 16, 2008

Fuga

No inicio ela não acreditou. Seguiu com um passo firme dizendo a si mesma que não havia perigo. Mas então o inimigo que até então ela ignorara tão sutilmente, ergueu sua arma e em seus olhos queimava um fogo ameaçador. Ela soube que o que temia secretamente era real. O perigo lhe dava as boas vindas de flechas nas mãos. Já em desespero de causa, começou a correr com todas as suas forças, concentrando toda a energia de seu corpo para que pudesse ter uma chance de sobreviver. Amaldiçoou suas mãos nuas onde tempos antes havia armas e proteções, nesse instante eram inúteis face ao perigo iminente. Só podia fugir, correr como um bicho acuado.
Mal escutou a flecha que cortara o ar atingindo em cheio sua carne fraca. Soube que fora atingida pois as vertigens não lhe deixavam se enganar. O impacto da segunda flecha fez com que caísse pesadamente no chão e contra todas as suas vontades. O desespero roçava seus cabelos delicadamente, quase se entregara a ele uma vez mais. Mas sabia, ah isso ninguém nunca precisou lhe dizer, sabia que se ficasse caída amaldiçoando suas fraquezas e sua dor que lhe era quase insuportável, e pior, se se entregasse ao desespero que era tão dócil e irresistível, sabia que a morte seria tão certa quanto a flecha que tinha cravada na carne. E a dor que sentiria antes que a morte lhe desse seu último beijo, ah, essa dor que sentia agora não era nada comparado ao que viria, tortura de uma Inquisição Espanhola. Quase morreu nesses poucos instantes em que ficara caída no chão, isso também soube, mas vagamente essa certeza lhe invadira e também vagamente e distante esquecera da dor e esforçara-se como nunca antes para se levantar. O passo bambo acompanhado de outra vertigem quase lhe jogara ao chão novamente . Mas segurara-se firme e então começara novamente a correr. Não muito longe o som de passos lhe indicavam que o inimgo aproximava-se. Embrenhara-se na floresta sagrada que era tão sua quanto de Deus, ela que era guerreira antiga e bruxa de si mesma. Concentrou-se o quanto pôde e ignorando o sangue que lhe escorria tão indiscretamente continuou abrindo caminho pelo mato virgem. A dor encontrara nela um lar santo, refugiando-se em seu peito como uma criança que se aninha no colo quente da mãe. Se houvesse tempo, talvez ela tivesse mesmo feito um carinho em sua criança chorosa que ao invés de amor lhe trouxera somente o sangue que não parava de fugir. Mas não havia tempo. Correu até perder a noção das horas. ...

Finalmente sentiu-se segura quando chegou a uma clareira onde a Lua lhe lambia os cabelos molhados de suor, banhou o rosto no lago que lhe refletia um rosto maltratado e cheio de cicatrizes invisíveis. Um lago de águas verdes profundas e sombrias como seus olhos de gata selvagem. O ar parecia se recusar a entrar em seus pulmões como se ela abrigasse um veneno mortal que ao simples toque contaminava as criaturas mais puras. O rosto ainda em brasas, sentou-se enconstada a uma árvore que lhe pareceu ser a mais antiga, de tronco largo e vivido, tão machucado quanto ela. Queria adormecer um pouco. Esquecer um pouco. Mas então por se sentir segura e salva, suas dores se libertaram. Foi só então que ela notou que talvez fosse morrer. É que toda a dor ignorada viera tão de uma vez, reclamando atenção, que era como ouvir toda uma multidão gritando palavras incompreensíveis. Arrancou as flechas sem dó lembrando-se só agora de que não era a primeira vez que quase morria. Ah, soube o que lhe aguardava. Uma noite muito longa repleta de febre, dores, vertigens, solidão, sangue e lágrimas. Quase chorara só pela espectativa do horror das horas que viriam agora que a dor estava liberta e totalmente desperta.
Não teve pena de si. Em momento nenhum culpou a vida injusta. Viveria o suficiente para esquecer seu pesadelo de noite. E ainda tinha a companhia muda da Lua que logo logo também morreria. Dormiu. Mas não houve sonhos.
Quando acordou desperta pelo Sol que entrava pela clareira timidamente, descobriu surpresa que ainda estava viva, que sua alma permanecia colada à sua carne, e que suas feridas já se fechavam discretamente. Talvez sobrevivessem cicatrizes e seriam as únicas lembranças dessa noite de quase morte, onde sua força selvagem quase lhe fizera deixar esse mundo pra sempre. Ainda estava meio febril mas já estava pronta para uma próxima fuga, ou talvez quem sabe dessa vez, estaria pronta para lutar... mesmo com suas mãos nuas e inutéis... afinal era guerreira e era preciso muito mais - depois que se passou o susto - tinha certeza que era preciso muito mais para perder as forças pra sempre. Isso talvez fosse um consolo. Se ao menos deixasse de temer a dor e sua nascente de lágrimas... Sacudiu a cabeça vigorosamente tentando espantar os pensamentos. Não era hora para isso. Levantando-se decidida disse a si mesma antes de voltar a abrir caminho pelo mato virgem: 'o tempo não espera por ninguém...' E foi-se já sem dor, ou talvez com a dor escondida. Quem sabe...

Renata Lôbo

5 comentários:

Renata Lobo disse...

Mesmo que ninguém pergunte: Sim, é pura metáfora.

Anônimo disse...

em termos, menos mal ser só metáfora. Em outros talvez fosse uma pena. Eu disse talvez... Excelente o texto, maduro como 'Compulsão Rósea', aquele que eu gostei tanto. As descrições estão na duração perfeita, longas o bastante para descrever o necessário, mas sem exceder o ideal. Apesar do tamanho do texto, a personagem continuou sendo sintética, sem nome ou rosto... poderia ser tanto você, quanto uma boneca ou a metáfora que você disse ser. Muito bom! Mais, mais... =]

Unknown disse...

Metáfora e das melhores...
Me contorcia aqui ao ir correndo os olhos pelas palavras, senti a dor de cada flechada. A dor foi tanta que a metáfora quase atingiu o real. As descrições bem trabalhadas e as orações curtas dão a empolgação de um suspense empolgante, de acelerar a leitura.

"Amaldiçoou suas mãos nuas onde tempos antes havia armas e proteções"

Ah, essas proteções, perigosas que só elas.

Muito bom moça. =)

Anônimo disse...

Interessante...
Texto mais ágill e desenvolvido. Algumas pontas soltas que abrem caminhos pra imaginação e um desejo de que sejam explicadas numa continuação. Algumas frases ficaram, não estranhas, mas por falta de outra palavra, vai essa mesma. Nada que uma revisão n arrume.
Gostei gostei.. espero outros..

Anônimo disse...

Faz tempo que você não posta nada... =[
Põe alguma coisa pra mim! =]