quarta-feira, maio 09, 2012

A Louca




O caminho era longo e o coração já palpitava na boca enquanto antecipava a noite que se aproximava com seus passos lentos. Há muito não se via o sol no horizonte e mesmo o vermelho desbotado já havia desaparecido do céu, sendo trocado por estrelas zombeteiras em seus casulos brilhantes, que ela observava entre uma esquina e outra.
Os olhos calmos escondiam a tempestade que se aproximava. Não prestava atenção à sua volta, mal tinha noção de si própria, de seu corpo, seu pedaço de mundo. Há muito havia se esquecido de si mesma e se entregado a essa rotina. Mas se lhe perguntassem, estava bem, estava inteira. Mesmo que fosse pedaços diminutos de quem um dia fora. Estava à caminho, e isso lhe bastava por hora. Caminhando lentamente pela contramão, vendo os faróis que refletiam seus olhos de gato perdido. Abandonado.
E então sorriu. Um sorriso pálido de quem nada espera. Um sorriso largado em  descompasso com os olhos, com o tempo. Não pensava no que estava fazendo, no que havia se tornado, apenas se deixava ir, sem pensar no tempo, nas horas que não se contentavam em devorá-la, mas devoravam tudo o que dela havia restado. Restos de uma vida que mal se lembrava. Não havia tempo. Apenas essa entrega.
Então havia chegado.
Estava bêbada. Gritava. Brigava. Xingava. Estava sozinha. Ela contra o mundo todo. O mundo que machuca e que a maltrata. E nem uma palavra seria suficiente para expressar toda a sua raiva, toda a sua ira. Ira por todo mundo. Pelo mundo todo. Nada se podia fazer, nada a conteria, não naquele momento. Aquele era seu momento e não precisava entendê-lo, apenas aceitava que o mundo girava assim. E os minutos passavam, as pessoas à sua volta olhavam, escutavam, havia risadas mal disfarçadas. Um embaraço contido.
Ela estava perdida e chorava. Bebia mais um pouco, apenas para encontrar a coragem para gritar suas dores em voz alta. Ela gritava e chorava de novo. Ela pega um copo e o quebra, não se satisfaz, quer destruir tudo, quer destruir tudo até mesmo a si própria, por que talvez assim pudesse ter um pouco de paz.
Sentou por um instante em busca de fôlego e as rugas no rosto se fizeram presentes, as marcas de um tempo que tinha um fim anunciado. O tempo que passava entre um gole e outro, entre um murro na mesa e um urro histérico, e então calmamente ela retomava toda a sua ira. E gritou com todo mundo e com ninguém. Tornou-se vulgar, queria era bater em alguém, os pedaços do copo não a satisfazia, não era suficiente ter cacos pelo chão. Queria mais, queria sangue, queria gente.
Queria afastar os rostos que a assombravam em noite quente sem lua no céu. Os rostos que nunca mais a veriam. E se a vissem? Pensava entre um devaneio e outro, entre uma injúria e outra; e se a vissem? Teriam rido da criatura patética que havia se tornado? Correndo de bar em bar, só para ser expulsa ao final de cada noite, só para voltar no dia seguinte gritando suas dores para pessoas que nunca a entenderiam?
Mas não havia volta. No fundo sabia bem disso, não havia como voltar àquela vida construída e desconstruída como retalhos podres de uma coberta fria. Mas então, porque sentia que queria tudo que podia ter e que o mundo não lhe dera? A noite mansa caminhava lá fora, em breve seria dia e seus fantasmas a deixariam, porque era hora de dormir, de sonhar um pouco.
Em breve seria hora de dizer adeus, encostar seus cabelos emaranhados no travesseiro puído e por um momento deixar de existir. E esse momento era doce. Mas por enquanto ela bebia e chorava toda sua dor e toda sua ira. Ira de mulher solta, de mulher triste que não tem ninguém para quem ser. Era mulher da noite que não sabia nada, mal sabia sonhar, nem mesmo sabia se ter.

Um comentário:

Auíri Au disse...

Ainda bem que o dia chegou...