domingo, abril 25, 2010


Eu não quero ser essa pessoa
com medo do escuro,
porque eu sei que não sou.

Renata Lôbo


Posso até estar perdida, e minha bússola não apontar para o norte. O mundo pode estar girando rápido demais e isso pode até estar me deixando tonta, e a mesma música toca no rádio cinco, dez vezes seguidas, é aquela voz que curiosamente linda e rouca grita minhas dores sem o menor pudor.
Eu acordei. E isso é lindo! Mesmo que eu não possa gritar a plenos pulmões - porque o mundo não entenderia. Mesmo que a claridade do mundo me cegue, mesmo que a dor ainda escorra de veias abertas. Ainda assim é lindo. Quero continuar acordada – mesmo que seja dentro da minha própria escuridão.
Às 4 da manhã, o mundo me afeta menos. O mercado vazio ecoa meus passos perdidos. E os olhos, ah! Olhos nenhum me seguem ou me notam. Uma plena casca vazia.
A noite me chama com um sussurro desesperado.
Às 4 da manhã ninguém olha a Lua. E eu estou a salvo.
E que eu não me lembre. Deus do céu, que eu não me lembre. Vidas passadas nunca me interessaram. Sempre destruí meus mundos, e nunca me arrependi – me deixa destruir mais esse, sem medo dos seus fantasmas. Sem medo de acordar encharcada em suor gelado.
Que você vá embora, meu adorado passado, e nunca mais volte para me assombrar – se não estará lá para segurar minha mão quando o grito assolar minha cama vazia.
Que todos aqueles beijos de eterna despedida me abandonem. Braços, sonhos, sorrisos, luzes, voz... cheiro.
Eu só quero me libertar.
Se ninguém nunca vai ficar até que a dor se vá, por favor, que eu pelo menos não me lembre de como era bom sorrir. De como minha escuridão se encolhia trêmula de medo. Eu te amo era uma grande tortura, tesouras cegas. Não vá! Não posso gritar pois você não escutaria, não me veria, nada. Não importa, eu grito, não minto mais tão bem. Não importa.
Vou me jogar em outro abismo. Daqui não vejo mais as estrelas.

Para alguém que nunca entendeu nada.


Renata Lôbo

domingo, abril 18, 2010


Eu não vou mais fugir.
Quero meus pesadelos, e o sangue escorrendo sem pudor.
Quero o lado feio de tudo, meu mau, meu não.
Deixe o inferno queimar.
Tô precisando enterrar meus castelos para ver se mato meus fantasmas.
Cansei.
Preciso é de um teto pra desabar sobre minha cabeça.
Não vou mais cair porque já sei que contos de fadas não existem, e em meu faz de conta, a mentira é um diabrete que usa meia-arrastão, e sorri cínica, venha, acredite em mim, eu sou seu amor pintado de cara pálida, lábio seco e perfume esgotado.
Que gracinha, ela aprendeu a chorar por amor.

Renata Lôbo

quinta-feira, abril 15, 2010

A deusa da Lua


Lá na Lua, naquele satélite frio e iluminado por estrelas, vivia uma moça de olhos grandes e pernas pequenas. Sua espécie, muito antiga e medrosa, abriu um buraco no solo lunar fazendo vários túneis, e passaram a viver assim, debaixo da terra, onde o terreno brilhava e era noite todo tempo. A princípio, a população subia para a superfície pelo menos uma vez por ano em seu diferente calendário, quando o Sol parecia muito próximo e na Terra havia eclipse. Os primeiros povos a viverem debaixo da terra sentiam falta do ar frio e do brilho das estrelas, eles passaram para a próxima geração as lendas sobre essa terra assustadora e linda. Na medida em que envelheciam e os guardiões da passagem para a superfície morriam, os jovens se tornavam cada vez mais medrosos acomodados ao aconchego de seus lares, terminaram passando à outra geração histórias sobre monstros mitológicos vivendo na superfície, criaram um herói lunar que teria levado seu povo para o mundo subterrâneo, salvando-os assim da extinção. O mundo lá fora foi fechado para sempre.
A terceira geração cresceu entre verdades e mentiras, não sendo mais capazes de distinguir o que era a verdade, ou até onde tudo aquilo era mentira. Na quinta geração nasceram bravos exploradores e curiosos homenzinhos engajados na busca pela passagem para a superfície. Houve mortes. Desabamentos. E no final, a loucura corrompeu aqueles que quase alcançaram o mundo lá fora.
A sétima geração sabia que houvera uma época em que os povos viveram na superfície. Ouviram lendas sobre as estrelas e sobre uma bola flamejante, e embora ninguém mais acreditasse nessas histórias, havia uma única coisa que lenda nenhuma revelava: Porque os antigos haviam ido para o subterrâneo? A oitava geração viveu em paz, sem fantasmas da superfície. A nona geração viveu angustiada: faltava alguma coisa em seus mundos, a terra brilhava e aquecia seus corpos pequenos, mas todos tinham o mesmo sentimento... Devia haver mais alguma coisa! Mais brilho! Mais sentimento! Mais vida!
A décima geração passou a sofrer de saudade aguda e sem saberem ao certo a causa da enfermidade nem como encontrar a cura, pouco a pouco começaram a se definhar. Na décima primeira geração não nasceu quase ninguém. E na décima quinta, uma única garota nasceu e seus pais morreram quando ela tinha sete anos.
A última garota da última geração tinha olhos grandes e pernas pequenas.
Quase não sabia falar e já havia esquecido seu nome, pois ninguém mais a chamava por ele. No subterrâneo lunar ela encontrava tudo que precisava para sobreviver e em sua cabeça tinha certeza de que ela havia surgido do chão, como uma semente de uma planta, e o mundo sempre havia sido dessa forma.
Ela se lembrava de uma planta como ela, mas não tinha certeza de que aquilo havia de fato acontecido, sonho ou não, a planta tinha cabelos longos e olhos grandes como os seus, e deles sempre escorriam chuva. Ela lhe cantava canções estranhas que a garota nada entendia, pois falavam línguas diferentes. Mas ela se lembrava de uma coisa, e disso tinha certeza, aquela planta era muito bonita. Não conseguia se lembrar quando ou como a planta havia ido embora...
A moça andava o tempo todo. Tinha pés grandes como os de um pato e ossos fortes nos joelhos. Não conseguia dormir no mesmo lugar por mais de dois dias, os túneis eram longos e a levavam para várias aldeias abandonadas, casas vazas, a Lua era muito grande e era toda dela!
Às vezes chovia água do céu de terra, às vezes chovia de dentro de seus olhos e ela limpava com suas pequenas mãos sem entender o que era aquela água de gosto estranho.
Foi seguindo seu instinto nômade que a fazia seguir sempre em frente que ela encontrou a última aldeia. Entrou por uma ruazinha estreita, pegou uma passagem aberta por uma planta, subiu várias pedras, entrou em um buraco escondido em outra rua mais estreita, engatinhou por passagens escondidas e subiu uma planta grande de corpo duro e antes de entrar no último buraco, viu sem entender, o esqueleto do último guardião preso no cipó de uma árvore lunar. Havia um capacete em seu crânio seco e nele havia palavras talhadas a fundo, mas ela não sabia o que era aquilo, ninguém nunca a ensinara a ler e aquela já não era mais a sua língua.
Ela empurrou uma pedra que tampava a superfície e um ar frio lambeu sua testa escura. Ela se assustou, mas não tinha medo. Saiu do buraco e sorriu com sua boca cheia de dentes pontudos e amarelos. Sorriu para as estrelas que lhe sorriram de volta brilhando com mais intensidade.
Ela se deitou de costas naquele chão duro e poeirento e admirou sem palavras que expressassem aquela bola azul e verde no céu. Adormeceu. E quando acordou, foi explorar aquele mundo novo. Agora não havia túneis, ruas, caminhos, aldeias. A Lua era imensa, e era toda dela. Ela era a última de sua espécie naquele satélite vazio. Ela era a Deusa da Lua.
Durante anos continuou andando em frente em campo aberto. Não olhava para trás e nunca sentiu falta do buraco e do mundo que deixara em seu passado. Silencioso demais. Então ela andou, dormiu, comeu, viveu sua vida nômade como sempre. Até que um dia avistou uma montanha vermelha e se aproximou fascinada. Só quando se aproximou foi que notou que a montanha respirava, e regularmente fazia sons estranhos, e se mexia. Ela notou que não era terra, mas planta. A planta mais linda que seus olhos já viram. Tinha um focinho imenso, redondo e escuro, não possuía orelha, mas dois buracos até que pequenos para o tamanho daquele bicho, sua pele de escamas grossas brilhava intensamente. A criatura a esmagaria com uma única pata, e pensando nisso ela sentiu algo bem próximo ao medo, mas não conhecia o significado desse sentimento, então o ignorou. O bicho abriu seus olhos, e ela viu duas bolas amarelas com fendas negras, e a respiração dele era pesada e perigosa. Havia asas grandes e enrugadas, mas ela não sabia o que era isso.
Ele a observou por alguns segundos. Sem o menor interesse. Aquela criatura tão pequena e insignificante não lhe interessava. Não daria nem mesmo uma boa refeição. A criatura fechou os olhos, virou a cabeça para o outro lado, apoiando-a sobre a pata imensa, e adormeceu novamente.
Ele era o último de sua espécie e diferente da garota, a criatura conheceu seus pais, teve amigos e se lembrava de todos os dragões que morreram, deixando-o com sua coleção de memórias. Ele estava sozinho e por vezes, quando adormecia, tinha a esperança de não mais acordar. Havia muito tempo que ele esperava.
Então acordou horas mais tarde e para seu desespero, a lua continuava fria e as estrelas lhe sorriam debochando de sua sorte. O último de sua espécie. Sua surpresa, no entanto, foi notar que a pequena criatura de cabelos desgrenhados dormia profundamente encostada em sua imensa barriga. Ele não sabia que bicho era aquele. Nunca havia visto nada parecido. Ele quis lhe perguntar coisas sobre sua vida, mas não teve coragem de acordá-la, ao invés disso, ficou velando seu sono até que adormeceu de novo.
Dias depois o Dragão voava para longe da menina de olhos grandes. Ficou decepcionado demais quando descobriu que não falavam a mesma língua e desejou nunca tê-la encontrado, pois assim não teria tido espaço para a esperança que habitou seu imenso coração, enquanto na ocasião, velava o sono daquela criatura insignificante. Mas por mais que ele voasse para longe, ela sempre o encontrava e passavam algum tempo juntos até que ele decidia fugir dela de novo. Batia suas asas e partia docemente. E quando ela o encontrava, dias depois, o Dragão sentia-se feliz e grato por ela não ter desistido. Até que ele parou de fugir.
Adormeciam sempre juntos, ela encostada por vezes sob suas asas que lhe protegiam do frio, ou sobre sua imensa barriga quente e barulhenta. O Dragão acostumou-se a velar seu sono, sentindo-se imensamente feliz quando ela suspirava em meio a algum sonho. Ela era tão frágil, notava, que ele poderia esmagá-la sem o menor esforço. E esse pensamento lhe atormentava.
Tornaram-se inseparáveis. A menina não podia mais viver sem aquela imensa planta. E o Dragão não podia viver sozinho de novo. Ambos se amavam. E viveram seus últimos anos na Lua. As últimas criaturas de suas espécies se encontraram e se completaram.
A moça de olhos grandes e pernas pequenas tinha medo, apenas às vezes, daquela imensa criatura que cuspia fogo pelo nariz, e na medida em que fora envelhecendo, passou a ter medo de muitas outras coisas. Era constantemente assaltada pelo medo do escuro, os sons fantasmagóricos daquela Lua vazia, e agora ela sabia dos perigos de morrer esmagada. E apesar de não falarem a mesma língua, tanto ela como o Dragão concordavam com uma mesma coisa, a solidão era muito mais perigosa.

Renata Lôbo

segunda-feira, abril 05, 2010


É, eu tinha razão em não acreditar nesse amor.
Era assim:
“Eu não te quero mais, ela disse com os olhos cerrados e opacos, olhando para o chão, apavorada demais para dizer a verdade.
“Então tá, ele respondeu com seu orgulho ferido, olhando além dela.
E então foram embora, cada um para um lado. Ele levando embora seu amor e suas juras eternas. E ela carregando mais sonhos estragados. Ovos podres de um sorriso falso.
É, eu tinha razão.
Se pudesse voltar, eu faria tudo certo dessa vez, ela pensa em frangalhos, sentada em uma sala escura. Então a verdade aparece para lhe socar a cara: Voce não sabe ser a pessoa certa, ela sussurra com um ácido cortante.

"Cure o futuro, sonhe o presente, viva o passado."
Errada como sempre...

Renata Lôbo