Abriu o guarda-roupa, passou a mão pelos tecidos sentindo a textura, quase sentia as cores entrando pelos seus poros. Depois cansou daquela calma de domingo e de repente, atirava todas as roupas ao chão com certa violência. Então sentada no chão, cerâmica fria, escolheu cuidadosamente o que vestir: uma saia preta que deixava suas pernas à mostra, as coxas sempre bem elogiadas em todos os lugares em que eram vistas, a blusa era de uma malha fria toda em azul, o que acentuava o negro dos cabelos, estes que estavam soltos como seda, ah, seria um boa noite essa! ou seria dia, é que como o céu estava todo ao contrário, teve certas dúvidas quanto a isso...
Voltara ao espelho mais uma vez admirando o que via. Ah, como se achava bonita mostrando toda sua sensualidade, estava sendo mulher, com suas formas e suas curvas. Então os olhos tornaram-se pesados, cansada, era um cansaço absoluto em que não sentia mais forças para fazer nada. O que faria se não pudesse sair naquela noite-dia? Mas, onde mesmo que ela ia?...
Ah, falta fazer a maquiagem! Olhou contente o reflexo daquela mulher que por alguma razão era ela. A mulher que estava sendo sensual com suas pernas à mostra, ela estava sendo tão seu corpo que era impossível naquele instante entender que... Mas o que ela devia entender? Absorvendo a dúvida, parada, suspensa no instante em que estava, ela olhou à sua volta... Tudo estava ao contrário! Mas porque então tudo fazia tanto sentido?
E o reflexo no espelho a chamou então, dissera seu nome, e houve o som que se faz enquanto fala, ela dissera com todas as letras o nome que era ela, como ela era aquele corpo. Dissera seu nome, e ela aproximou-se pasma, intrigada, curiosa. Olhou então pela primeira vez, pela primeira vez ela não apenas olhou como viu dentro de seus próprios olhos. Ah, mas é isso que há dentro de mim? Um abismo profundo! Mas isso não pode! Não têm como alguém ser tão... Mas o que sentia enquanto caía por aquele abismo? Seus olhos... pintados com maquiagem forte. Sua máscara de guerra, de vida. Seu palco, abismo sem fim. E a imagem de repente ganhou vida, vida essa que ela não tinha. Como você reagiria ao defrontar-se com seu reflexo vivo? O que sentiria esse seu reflexo? Quais seriam as coisas que lhe faria medo. Ela sentia medo ao se ver tão viva daquele jeito, mas sempre se imaginara um pouco mais... mais bonita, um pouco mais elegante. E um grito enfurecido subiu-lhe à garganta, um grito seco e sem eco. Mas voz não tinha, nada saíra daquela raiva ensandecida. Medo profundo. Entendera então de onde vinha seu abismo. Já flutuava num espaço sem fim, pois era o infinito todo aquele lugar. O espelho e as roupas no chão desapareceram e no lugar vieram sombras sem formas, sem som algum, sem sentimento nenhum. Naquele espaço só havia o silêncio eterno. Afogava-se no útero de uma mãe que lhe carregava sem saber quem seria, sem saber que se perderia...
6:15 O relógio toca, acorda com o coração aos pulos, nunca se acostumava com aquele som repentino que a tirava quase à força todas as manhãs de algum lugar... Onde era mesmo? Ah, sem tempo, hora de acordar as crianças e ir trabalhar.
Renata Lôbo